MÁRIO SOARES e a entrevista publicada na revista alemã DER SPIEGEL, em Agosto de 1974

Por ocasião do falecimento de Mário Soares, os meios de comunicação social encheram-se de comentários, laudatórios uns, outros nem tanto, alguns ainda profundamente caluniosos. Entre estes últimos insere-se a publicação da Presidente do PSD de Caminha, Liliana Silva, que peca por manifesta ignorância e despeito, que sempre se revelaram maus conselheiros.

As afirmações dos detractores do legado de Mário Soares decorrem da uma passagem da entrevista feita pela jornalista Jutta Fischbeck, da revista alemã DER SPIEGEL, realizada nas instalações do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa e publicada no número 34 da mesma revista, em 1974. À referida entrevista foi anteposto o título “Notfalls,  auf weiβe Siedler schieβen”, o que significa “Em caso de necessidade, atirar sobre colonos brancos”. O facto é que, por muitas leituras que se façam da referida entrevista, quer na versão original, quer na tradução em português, não se vislumbra tal afirmação por parte de Mário Soares, mas pelo contrário, é a jornalista que pretende forçá-lo a corroborar as suas próprias palavras, o que leva a inferir tratar-se de uma interpretação maliciosa, que vai inquinar uma abordagem mais incauta, ou já de si tendenciosa, do conteúdo da publicação.

Passo então a transcrever o texto original, ao qual se seguirá a respectiva tradução, da minha responsabilidade:

“SPIEGEL: Muitos dos brancos, que não querem regressar a Portugal, tentam formar exércitos de mercenários para combaterem os Movimentos de Libertação. Nos últimos tempos, em Angola, grupos de brancos radicais de direita têm provocado sangrentos distúrbios raciais. Poderá Lisboa evitar que esses brancos, particularmente em Angola, possam tomar o poder?

SOARES: Eu penso que sim.

SPIEGEL: Como?

SOARES: O exército em Moçambique e Angola é absolutamente leal àqueles que fizeram a Revolução do 25 de Abril. E o exército não permitirá que mercenários brancos, ou grupos semelhantes, se sublevem contra o exército. Claro que haverá tentativas, em Moçambique já as houve.

SPIEGEL: E em Angola, onde vive mais do dobro do número de brancos e menos um terço do número de pretos que em Moçambique?

SOARES: Em Angola há-de haver uma série de actos mais ou menos desesperados e perigosas tensões raciais. No entanto, creio que, de momento, o exército pode e vai manter a ordem democrática.

SPIEGEL: Se necessário, o exército português vai, portanto, atirar sobre portugueses brancos?

SOARES: Não vai recuar, não pode recuar. O exército já mostrou que tem uma mão forte e quer manter a ordem a todo o custo.

SPIEGEL: Apesar do exército, não é de excluir que os brancos declarem a independência como já aconteceu na Rodésia. Pelo menos Angola poderia lidar bem com uma solução como a da Rodésia, até do ponto de vista económico.

SOARES: No início, no primeiro mês após a Revolução, tive muito medo de que isso viesse a acontecer. Mas quanto mais tempo passa, mais difícil se tornará, penso eu, uma tentativa dessas.

Uma leitura atenta e isenta das declarações de Mário Soares não poderá deixar de reconhecer que só uma imensa dose de má fé e desonestidade política e moral poderá distorcer de forma tão vergonhosa as preocupações que, na altura, ocupavam a mente do Governo. Corria-se o risco do assalto violento ao poder pelo radicalismo branco de direita que poderia armar exércitos de mercenários dispostos a tudo. Mercenários, sempre houve, desde a Antiguidade até ao presente, e houve-os de todas as cores e etnias, mas o certo é que quem é pago para matar, não é movido por ideal algum, nem por qualquer tipo de convicção política. É facto incontestável que esse perigo foi real em Moçambique e ainda hoje vivem entre nós, pacificamente integrados, descendentes de alguns responsáveis de então.

Perguntar-se-á então se Mário Soares errou. Certamente que sim, todo o ser humano é passível de errar, mas os erros que poderá ter cometido foram certamente a opção mais correcta no momento vivido, conforme posteriormente ficou confirmado. Se as suas decisões políticas não mereceram a concordância de toda a opinião pública, isso só comprova o espírito democrático da sociedade que ajudou a construir, porque só os regimes totalitários geram as autoproclamadas unanimidades falaciosas por demais conhecidas em séculos de história.

Liliana Silva pretende, naturalmente, captar a simpatia dos cidadãos retornados residentes na sua área administrativa, estimulando ódios e esforçando-se por aviltar a memória de MÁRIO SOARES, o grande responsável pela Ordem Democrática que moldou o Portugal em que vivemos e que foi o garante do desenvolvimento pacífico dos países de expressão portuguesa.

É mais que tempo de repor a verdade e acabar com os boatos reaccionários que continuam a envenenar certos sectores da população, que tendo embora o direito à liberdade de pensamento, têm também o dever cívico de respeitar a verdade dos factos históricos.

Para eventuais consultas, ficam acessíveis as duas versões da referida entrevista, o original (em alemão) e a respectiva tradução.

Maria Cabrita Antonieta Mendonça

 

41651529_001

DER SPIEGEL Nº 34/1974 – Entrevista a Mário Soares, Ministro dos Negócios Estrangeiros (traduzido)

DER SPIEGEL Nº 34/1974 – Entrevista a Mário Soares, Ministro dos Negócios Estrangeiros